A voz feminina
na escritura da Bíblia em
A mulher que escreveu a Bíblia, de Moacyr Scliar
Maria do Rosário
Andrade Chaves
A
narradora e protagonista, para tentar solucionar um problema de relacionamento
com o pai e com o homem que ama, procura ajuda de um terapeuta de vidas
passadas. Ela se vê na corte do rei Salomão, envolvida em episódios bíblicos. Por
ser feia e desejar o anonimato, é usado o adjetivo para nomeá-la.
Uma voz feminina se
posiciona na defesa da voz da mulher
Este artigo tem como
foco analisar o livro A mulher que
escreveu a Bíblia, de Moacyr Scliar, no que diz respeito à visão feminina
no contexto em que a história se inscreve, na voz da narradora e personagem
principal.
A fim de embasar
teoricamente os pressupostos que norteiam a voz feminina como intermediária da
narrativa, foram utilizados estudos e conceitos ligados à metalinguagem, ao
dialogismo, ao humor e à carnavalização, teorias que se entrelaçam e se referem
às relações de sentidos entre os enunciados, em que a palavra é sempre
perpassada pela palavra do outro, dialogando com outras palavras, de acordo com
as concepções desenvolvidas por Bakhtin (2011).
A
VOZ FEMININA
A voz da narradora
percorre toda a obra. Ela via aquele mundo, de séculos atrás, sob a perspectiva
da mulher atual, por isso não concordava com a submissão das mulheres,
obrigadas a se manterem constantemente preparadas para um possível chamado do
rei. A feia também se revoltava com as péssimas condições em que viviam as
concubinas mais velhas, descartadas após exercerem suas funções por muitos
anos, desde a época de Davi, pai de Salomão. A sua voz surge em seus devaneios,
nas reflexões acerca da vida, do amor, de Deus, assim como nas entrelinhas dos
textos que escrevia de acordo com as instruções dos anciãos.
Judith Butler, a partir
de ideias de Simone de Beauvoir, afirma que a mulher é conceituada pelo sexo -
o sexo feminino - e que isso não a torna sujeito com uma identidade marcada. É
preciso que se reconheça o feminino como um gênero, que seria o Outro, tendo em
vista que o homem é reconhecido como um gênero universal. Dessa forma, restaria
à mulher ser aquela que não é homem. E, além disso, a mulher é definida em
relação ao homem e através do seu olhar.
O gênero universal ao
qual Beauvoir se refere é uma construção que se estende até a atualidade, tendo
em vista que, ao se referir ao ser humano, as pessoas dizem “o homem”, gênero
em cuja instância a mulher se encontra inserida.
Quando a feia aprendeu
a ler e escrever se tornou diferente, superior a todos aqueles, homens e
mulheres, que não detinham esse saber. De forma que ela se transforma em
mulher, como gênero, quando lhe é reconhecida essa diferença. A partir do
momento que Salomão a incumbe da tarefa da escritura da história de sua gente,
ela já não se acha mais tão feia, tem a certeza de que “descobria em mim uma
oculta beleza, a beleza da inteligência, da cultura”.
A questão da identidade
da mulher como gênero social e cultural pode ser vista nessa obra a partir das
reflexões e atitudes da narradora. Antes de exercer a função de escritora da
Bíblia, ela nada mais era que mais uma mulher na corte de Salomão. Para sua
infelicidade, era uma mulher feia, com raras chances de ser chamada para passar
a noite com o marido e consumar o casamento. Assim, nenhuma mulher, na época em
que os fatos aconteceram, pensava em ser alguém, um sujeito com uma identidade.
Para a sociedade, elas eram apenas objetos de desfrute do rei e de transações políticas
e econômicas. “De acordo com a tradição e a lei”, um casamento consolidava uma
aliança entre a Corte e a tribo, uma aliança política, uma vez que promovia
proteção de ataques de tribos vizinhas e, além disso, as dívidas poderiam ser
perdoadas ou renegociadas, de acordo com a conjuntura econômica. Era dessa
maneira que as mulheres eram vistas e negociadas.
O diálogo, nas obras de
Simone de Beauvoir, possibilita à filosofia reconhecer aspectos dos feminismos
e colocá-los sob novos enfoques. Beauvoir se preocupava com a situação
histórica das mulheres, considerando características de gênero, raça, etnia,
classe social, participação política, opressão e alteridade, pois sabia que cada
mulher vivencia suas próprias experiências de opressão e de exclusão. E é por
meio do diálogo, expresso na escritura do livro de Salomão, que a mulher exerce
um papel privilegiado naquela sociedade. E, embora não lhe fosse possível
escrever como queria, era inteligente o bastante para se colocar nas
entrelinhas dos textos, a fim de se fazer ouvir e tentar mostrar que a mulher
precisava ser tratada com respeito.
Para escrever a
história encomenda por Salomão, poderia usar o seu estilo, mas teria que se
orientar pelo conteúdo ditado pelos escribas. “Eu fora derrotada,
fragorosamente derrotada. Minhas esperanças de seduzir Salomão via texto tinham
ido por água abaixo. Pior: agora os velhos assumiam o comando”. E ela não teria
quaisquer chances contra eles. “Tudo que me restava era a submissão”.
A feia se via presa na
corte, obrigada a escrever o que não queria. Almejava não somente a liberdade
da palavra, mas sua liberdade como ser humano. Ao reconhecer que para Salomão
ela era o seu projeto, a história que ele desejava eternizar, melhora sua
autoestima, mas ao mesmo tempo ela não deixava de ser um meio, porque o seu papel
não seria reconhecido, apenas o papel do rei.
Infere-se que a voz
feminina perpassa A mulher que escreveu a
Bíblia de forma constante, marcante, triste e firme em suas convicções,
como um grito para mostrar a voz de todas as mulheres. Felizmente ela se cura,
à custa de muita dor vivida no passado, e segue sua vida em liberdade.
A
ESCRITA E A ESCRITURA
Nessa
obra é recorrente o uso da metalinguagem, principalmente quando a narradora se
refere à palavra, à escrita, ao texto, seus diálogos e sentidos, tendo em vista
que a escrita havia mudado sua vida e lhe proporcionado uma forma de poder e de
libertação. “Bastava-me o ato de escrever. Colocar no pergaminho letra por
letra, palavra após palavra, era algo que me deliciava. Não era só um texto que
eu estava produzindo; era beleza, a beleza que resulta da ordem, da harmonia”
Sobre seu
relacionamento com o livro e Salomão, ela medita:
Escrever aquele
livro não seria só uma realização para ele, seria uma realização para mim
também. Templo eu jamais haveria de construir; mas a obra de que ele cogitava
estava, sim, ao meu alcance, ainda que eu levasse toda a vida a escrevê-la.
Nesse empreendimento estaríamos juntos, ele e eu. (...) O texto seria o refúgio
em que habitaríamos, só ele e eu.
Ao
primeiro narrador (o terapeuta) também pode ser observado o uso do recurso metalinguístico,
quando ele busca a si mesmo na história, “procuro-me nos nomes próprios e nos
nomes comuns, procuro-me nos verbos e nos advérbios, nos pontos, nas vírgulas,
nas reticências. E não me acho. Assim como não me acho em lugar nenhum. Estou
perdido”.
Com relação ao humor, de
acordo com declarações do próprio Scliar[1],
filho de judeu, nascido no Brasil, ele é uma particularidade do judeu. Scliar
não seguia as tradições judaicas, embora tenha vivido em uma comunidade de
judeus, em Porto Alegre. No seu livro A
condição judaica, ele declara que “o humor peculiar do perseguido, que é uma
defesa contra o desespero; (...) um humor de meio-sorriso, não de risos”. Percebe-se
em A mulher que escreveu a Bíblia o
humor perpassando a narrativa, muitas vezes de forma sutil.
O humor nessa obra é uma
consequência da carnavalização que, segundo Bakhtin (2011), é a transposição do
espírito carnavalesco para a arte, em que a palavra é representada e bivocal,
em que se misturam dialetos, jargões, vozes e estilos, resultando em um romance
polifônico.
Segundo Bakhtin (2015),
entre as principais características do efeito carnavalesco, destaca-se o
questionamento acerca da verdade, cujo conteúdo é a aventura de ideias; as
discussões sobre questões relacionadas à morte e ao sentido da vida; a
constituição do fantástico; o gosto pelas infrações às normas estabelecidas de
conduta e de fala, em que surgem discursos cínicos, profanações
desmistificadoras do sagrado e a presença de contrastes violentos. A linguagem
não respeita limites, tornando-se obscena e excêntrica, permitindo que o
reprimido possa ser exposto, tornando central aquilo que é marginal.
Além dos exemplos
apresentados no decorrer deste artigo, pode-se perceber a subversão, ainda,
quando a feia decide profetizar, projetar-se rumo ao futuro. Sua intenção é
subverter a ordem na história de Salomão, uma vez que esgotara sua paciência em
escrever sobre um passado repleto de dúvidas, em que havia grandes contrastes
entre o povo e o rei em seu templo.
Outra marca relevante
do efeito carnavalesco é a imagem grotesca do corpo em oposição à clássica, uma
vez que no lugar de um corpo retratado pela beleza e proporções perfeitas, a
narradora e personagem principal tem um rosto feio, com protuberâncias
salientes, fato que sempre a deixara em uma condição marginalizada na
comunidade em que vivia e, posteriormente, na corte do rei Salomão. Por outro
lado, sua feiura lhe abriu caminhos, foi alfabetizada e se apaixonou pela
escrita. De forma que a subversão, por meio do efeito carnavalesco, utiliza o poder
da escrita dado a uma mulher.
RELAÇÕES
DE SENTIDO ENTRE ENUNCIADOS
De acordo com Bakhtin
(2011), a língua tem a propriedade de ser dialógica, mas não se refere ao
diálogo face a face, e sim a todos os enunciados no processo de comunicação. A
palavra é sempre perpassada pela palavra do outro, dialogando com outras palavras,
assim como o enunciador, para constituir um discurso, considera o discurso de
outro, presente no seu próprio discurso.
Dialogismo diz respeito
às relações contratuais ou polêmicas, divergentes ou convergentes, de aceitação
ou recusa, de acordo ou desacordo, estabelecidas para a solução de conflitos,
promoção de consenso, busca de acordo ou entendimento. O discurso do outro pode
ser inserido no enunciado de forma aberta (discurso direto e indireto, aspas e
negação) ou por meio do discurso alheio não demarcado, em que as vozes se
misturam, mas são claramente percebidas (discurso indireto livre, polêmica
clara ou velada, paródia, estilização).
O terceiro objeto de
estudo do dialogismo se refere ao sujeito, que se constitui em relação ao
outro, apreende as vozes inseridas na sociedade em que o indivíduo vive e se
relaciona. Na verdade, são várias vozes, tendo em vista que o sujeito entra em
contato social em diferentes contextos.
Sobre o sujeito e sua
função dialógica, Oliveira e Santos (2001) informam que o ato que produz a
linguagem verbal é a enunciação (dizer), e o resultado é o enunciado (dito). Há
que se fazer, ainda, a distinção entre o sujeito da enunciação, externo ao
enunciado, e o sujeito do enunciado, interno a ele. Por exemplo, na frase: “O
pastorzinho abriu a porta e desapareceu nas sombras do corredor”, o sujeito do
enunciado é o pastorzinho, agente que pratica as ações; e o sujeito da
enunciação é a narradora. Essas vozes ficcionais se misturam com uma voz que as
agrega, que é a voz do autor, Moacyr Scliar.
A paródia com a Bíblia
se apresenta logo no início da narrativa, no momento em que a narradora
desqualifica o Gênesis, negando-o
tanto por meio da linguagem coloquial, usada no século XX, quanto pelo conteúdo
erótico, inexistente na Bíblia.
Há ainda uma paródia à
parábola da semeadura quando ela se refere à enorme quantidade de sinais em seu
rosto. Um vento muito forte poderia desprender as protuberâncias e levá-las
para longe. “Se caísse entre pedras feneceria, se caísse na areia do deserto feneceria,
se caísse na cratera de um vulcão feneceria – e ele fenecendo eu só me
alegraria, mas se caísse em terra fértil...”.
E, finalmente, uma alusão
ao verso do poeta Vinícius de Moraes “as feias que me desculpem, mas a beleza é
fundamental”, que introduz o poema “Receita de Mulher”, se dá quando a mulher
diz que “a feiura é fundamental, ao menos para o entendimento desta história. É
feia, esta que vos fala. Muito feia”.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Em A mulher que escreveu a Bíblia observa-se uma grande habilidade e
empatia do escritor ao se colocar no lugar de uma mulher e elaborar sentimentos
como se mulher fosse. A identidade feminina foi bem colocada como sujeito de um
gênero que busca participar da história em que tinha um papel, pequeno, mas
conquistado por meio da escrita e de sua perspicácia, identidade inserida em
uma sociedade que a oprime e a exclui.
O papel submisso da
mulher é colocado social e culturalmente na sociedade da época do rei Salomão e
se apresenta como uma luta da narradora para se fazer ouvir e ser respeitada,
valendo-se de sua posição, naquela época, para evocar sua voz de forma
contestadora.
A escrita, a palavra e
o texto, elementos destacados pela narradora, apresentam-se na medida certa
para pontuar a importância do texto para escritor/leitor, já destacado no
título do livro com o verbo “escrever”, e ressalta a relevância do conhecimento
que a leitura proporciona. O ato da escrita e seus desdobramentos como texto,
linguagem, diálogo, livro, sentidos, voltam-se ao próprio texto no movimento
circular que a metalinguagem promove, a fim de destacar o poder e a libertação
que a escrita proporcionara à narradora.
De acordo com o livro
sagrado, a mulher foi criada a partir de uma parte do homem. Esse fato pode
explicar como, já no contexto mitológico da criação do mundo, à mulher cabia um
espaço secundário na sociedade. A visão machista se inscreve, portanto, na
Bíblia, embora não exista confirmação científica para tal afirmativa. Assim, a
subversão efetivada através da voz feminina estabelece um dos efeitos
carnavalescos, uma vez que é essa voz que constrói e dialoga no texto.
O diálogo é marca
constante nessa obra de Scliar porque todos os enunciados promovem a
comunicação entre a narradora e o leitor. Assim, as relações de sentido que se
estabelecem entre os enunciados estão presentes na voz feminina, por meio de
uma linguagem que, submetida a ordens rígidas, inverte-se para processar uma
mudança.
Considerando-se, ainda,
a relevância da escrita da Bíblia e o próprio ato de escrever ressaltar a
importância da palavra e do texto, pode-se inferir que a escrita fez com que a
narradora refletisse sobre seus problemas e encontrasse as respostas para
eles. Dessa forma, ela encontrou a
solução dos seus problemas tanto na vida passada quanto na real e seguiu o seu
caminho.
Infere-se que a voz
feminina é a que se destaca em A mulher
que escreveu a Bíblia, ainda que o gênero universal, o masculino, englobe o
feminino. A voz feminina, geralmente deixada à margem, se coloca à frente da
narrativa, questionando sua trajetória na provável vida passada na corte do rei
Salomão.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética
da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes,
2003.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski.
Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
BRAIT, Beth (org). Bakhtin,
dialogismo e construção de sentido. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, 1997.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e
subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2015.
CULLER, Jonathan. Teoria Literária: uma introdução. São
Paulo: Beca Produções Culturais Ltda, 1999.
FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São
Paulo: Ática, 2006
KOCH, Ingedore Vilaça, BENTES,
Ana Cristina e CAVALCANTE, Mônica. Intertextualidade:
diálogos possíveis. São Paulo: Cortez, 2012.
MEDEIROS,
Fernanda. Dialogismo e ironia em A mulher
que escreveu a Bíblia. Disponível em < www.pos-graducacao.bib.uepb.edu.br/ppglif/...2014/Fernanda Medeiros.pdf>
acessado em 16 set. 2015>
SANTOS,
Luis A. Brandão. OLIVEIRA, Silvana Pessôa de. Sujeito, tempo e espaço ficcionais: introdução à teoria da
literatura. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
SCLIAR, Moacyr. A mulher que escreveu a Bíblia. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SCLIAR, Moacyr. A condição judaica. Porto Alegre:
L&PM Editores, 1985.
SCLIAR, Moacyr. Judaísmo: dispersão e unidade. São
Paulo: Ática, 2001.
SCLIAR, Moacyr. O texto, ou: a vida – uma trajetória
literária. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
[1] Em seu livro autobriográfico O texto, ou: a vida – uma trajetória
literária, Scliar fala da importância da escrita e da leitura em sua vida.
Por isso, a referência constante ao texto é uma característica que o autor
colocou em sua personagem e narradora.